Chico Rei por Câmara Cascudo
Um Rei africano foi derrotado em combate e feito prisioneiro. O vencedor destruiu aldeias, plantações e celeiros do vencido. Reuniu a rainha e os príncipes-meninos, sacudio-os na estrada como um rebanho sem nome, vendendo-os a todos como escravos, para o Brasil.
Na travessia do Atlântico, Rei negro perdeu um filho e viu morrerem seus melhores generais e soldados fiéis, de fome, de frio, de maus-tratos.
Impassível na humilhação, majestoso na derrocada, o soberano, riscado de chicotadas, faminto e doente, pisou as areias do Novo Mundo¹, como o último dos homens.
Foi, dias e dias, exposto no mercado de escravos, marcado com tinta branca, comendo uma vez por dia.
Um proprietário de minas de ouro, vindo ao Rio de Janeiro², adquirir reforço vivo para o trabalho esgotante das lavras, escolheu o Rei, como quem simpatiza com um forte animal que o cansaço definhou.
Palpou-lhe os braços, os ombros, fê-lo abrir a boca, mastigar, tossir e andar, e comprou-o, num lote, compreendendo mulheres e homens. Marcharam a pé, para as Minas Gerais³, ao sol, à chuva, num tropel inominado e melancólico de condenados sem crime.
O Rei, de calças de algodão, busto nu, abria a marcha, como se dirigisse suas tropas, ao alcance das cubatas⁴, cercado de honrarias.
Ficaram todos em Vila Rica⁵.
O Rei negro fora batizado com o nome de Francisco. Os negros escravos, em voz baixa, juntavam os dois títulos supremos do ex-soba⁶ valoroso.
Diziam-lhe o nome cristão e predicado real.
O escravo era Chico Rei.
Silencioso, tenaz, obstinado, o negro revolvia a terra e balançava a bateia com regularidade de uma máquina sem repouso e sem pausa.
Feitor e amo distinguiam-no-se pela sua sobriedade, esforço invulgar e natural compostura de modos e ações.
Derredor de sua figura agrupavam-se os escravos que tinham sido guerreiros valentes, curvados, teimosos, insensíveis ao tempo, multiplicando o trabalho.
Um dia, Chico Rei apareceu ao amo com o preço de sua mulher em pepitas de ouro.
O fazendeiro aceitou o prêmio e assinou a carta de alforria⁷ da negra que fora uma rainha.
Mais algum tempo, Chico Rei era livre.
Ele e a mulher, ajudados pela fidelidade de uma Corte que a desgraça não apagara em valor, economizavam, noite e dia, preço da liberdade dos filhos e dos vassalos.
Ano a ano Chico Rei retirava da massa cativa homens e mulheres, restituindo ao trabalho livre seus velhos companheiros de armas e de caçadas.
Um a um, reconstruía-se o reino perdido, agora nas terras americanas.
Comprou ele um lata de terra de Encardideira⁸. A terra era uma mina de ouro.
Chico Rei ficou rico, e o ouro ampliou os limites de seu domínio que era a reunião de homens livres, preso por um liame de veneração e esperança.
Rei de manto e coroa, aclamado nas festas de Nossa Senhora do Rosário⁹, Chico Rei era realmente um Soberano, com o poder de um direito que fora conquistado com lágrimas, sofrimentos e martírios. Nenhuma autoridade era superior à sua voz, voz de Rei no mando, sem esquecer os anos igualitários no eito da escravidão.
Negros e negras viviam com conforto e tinham alegrias trovejantes nos bailes populares, nos batuques que se estiravam pelas noites, no círculo sem-fim das danças-ginásticas e coletivas.
No dia 6 de janeiro, da Encardideira, vinha aquele Reino da África, vistoso, empenachado, rutilante de pedrarias, bailando pelas calçadas de Vila Rica, a Ouro Preto¹⁰, aristocrática, povoada de igrejas e palácios, em louvor da Padroeira dos Escravos¹¹.
A Rainha, suas filhas e damas de honra trazem a carapinha¹² empoada de ouro.
Depois de Missa, da Procissão, dos bailados públicos, antes de voltar ao Reino que se erguia, disciplinado e tranquilo, na Encardideira, a Rainha e vassalas banhavam a cabeça na pia de pedra que há no Alto da Cruz¹³.
No fundo da taça, brilhando n'água trêmula, ficava todo o ouro que enfeitara os penteados. Novos escravos iam sair do cativeiro, resgatados por aquela dádiva singular.
Por isso ninguém esquece, nas terras livres das Minas Gerais, a fisionomia de Chico Rei, o negro soberano, vencedor do destino, fundador de tronos, pela persistência, serenidade e confiança nos recursos eternos do trabalho.
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¹Novo Mundo: era como chamavam o Brasil durando o Período Colonial.
²Rio de Janeiro: Desde o período colonial até as primeiras décadas de independência, o Rio de Janeiro foi uma cidade com grande número de escravos. Houve um grande fluxo de escravos africanos para o Rio de Janeiro: em 1819, havia 145.000 escravos na capitania. Em 1840, o número de escravos chegou a 220.000 pessoas. O Porto do Rio de Janeiro foi o maior porto de escravos da América.
³Minas Gerais: É um estado do Sudeste do Brasil. É conhecido por suas enormes reservas de ferro e grandes reservas de ouro e pedras preciosas, incluindo esmeraldas, topázios e minas aquáticas. A escravidão no Brasil mudou drasticamente com a descoberta de depósitos de ouro e diamante nas montanhas de Minas Gerais na década de 1690. Escravos começaram a ser importados da África Central para campos de mineração em grande número.
A distância do Rio de Janeiro até Minas Gerais pelo caminho mais curto é de pelo menos 556,49 km (É o caminho que Chico Rei e outros escravos foram obrigados a percorrer a pé).
⁴Cubatas: O têrmo cubata designa uma habitação rústica e precária, coberta de palha, que serviu para abrigar os escravos durante a Escravidão.
⁵Vila Rica: é uma cidade do estado de Minas Gerais, uma antiga cidade mineira colonial. Fundada no final do século XVII. Inicialmente o nome era Vila Rica de Albuquerque e, em seguida, Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto. Hoje é conhecido como Ouro Preto
⁶Soba: Em todas as províncias de Angola, o título "Soba" é dado aos líderes comunitários tradicionais para fornecer orientação local e liderança na resolução de questões sociais e físicas da comunidade.
⁷Carta de alforria: era um documento que era dado ou vendido a um escravo pelo seu proprietário.
⁸Encardideira: É uma mina de escavação subterrânea na cidade de Vila Rica onde Chico Rei trabalhou e depois a comprou durante o Ciclo do Ouro. Em 1950, a Encardideira foi redescoberta e renomeada como Mina de Chico Rei.
⁹Nossa Senhora do Rosário: é o título mariano apresentado aquando da aparição da Santíssima Virgem Maria a São Domingos de Gusmão em 1214 .
A santa já era cultuada na África, levada pelos portugueses como forma de cristianizar os negros.
A construção da igreja de Nossa Senhora do Rosário foi ordenada por Domingos Dias da Silva, tendo sido construída por seus escravos, no século XVIII, em um local em que havia uma senzala.
Ela foi edificada para que os escravos tivessem um local só para eles de celebração da fé, mas isso não era por bondade ou algo do gênero. O fato é que os escravos não podiam entrar na igreja de Nossa Senhora das Graças, pois ali era somente para os brancos.
¹⁰Ouro Preto: foi a cidade foco do Ciclo do Ouro do Brasil no século XVIII sob o domínio português.
¹¹Padroeira dos Escravos: outro nome para a Nossa Senhora do Rosário.
¹²Carapinha: cabelo crespo e lanoso, característico da raça negra.
¹³Alto da Cruz: é um bairro de Ouro Preto.