A LENDA DA SAPUCAIA-ROCA POR CÂMARA CASCUDO
Sapucaia-Roca¹ é uma pequena povoação à margem do rio Madeira².
Pouco abaixo do lugar em que se acha assentada, referem os índios que existiu outrora uma outra povoação, muito maior do que esta, e que um dia desapareceu da superfície da terra, sepultando-se nas profundezas do rio.
É que os Muras³, que então habitavam, levavam a vida desordenada e má, e nas festas, que em honra de Tupana⁴ celebravam, entregavam-se as danças tão lascivas e cantavam cantigas tão impuras, que faziam chorar de dor aos Angaturamas⁵, que eram os espíritos protetores, que por eles velavam.
Por vezes, os velhos e inspirados pajés⁶, sabedores dos segredos de Tupana, haviam os advertido de que tremendo castigo os ameaçava, se não rompessem com a prática de tão criminosas abominações.
Mas cegos e surdos, os muras não os viam, nem os ouviam. E pois um dia, em meio das festas e das danças e quando mais quente fervia a orgia, um tremor de súbito a terra e na voragem de águas, que se erguiam, desapareceu na povoação.
As altas barrancas que ainda hoje ali se vêem, atestam a profundidade do abismo em que foi arrojada a povoação e os réprobos...
Depois, muitos anos depois, foi que começou a surgir a atual população, que ainda não pode atingir ao grau de esplendor da que fora submergida.
Foram de novo habitá-la os Muras; mas em breve, por entre escuridão da noite começaram a ouvir, transidos de medo, como cantar sonoro de galos, que incessante se erguia do fundo das águas.
Consultados os pajés, que perscrutavam os segredos do destino, declararam estes que aquele cantar de galos, ouvido em horas mortas da noite, provinha daqueles mesmos Angaturamas, que deploram outrora uma misérrima sorte da povoação submergida e que, sempre protetores dos filhos dos Muras, serviram-se do canto despertador dos galos da sapucaia-roca submergida, para recordarem do tremendo castigo por que passaram seus maiores e desviam a nova geração do perigo de sorte igual.
É este o fato que deu origem ao nome da povoação: Sapucaia-Roca.
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1. Sapucaia-Roca: “Sapucaia-Roca” ou “Sapucaia-Oroca” no contexto da história significa “galinheiro”, porém “sapucaia” também pode ter por seu significado um tipo de árvores mirtáceas (plantas com arbustivas com flor) brasileira e também o seu fruto que também possuem glândulas produtoras de óleos aromáticos. A lenda pode ter sido criada por missionários como fábula moralista, visando a catequese. Há na lenda elementos de Atlântida e possivelmente também de Eldorado ou Paitíti.
2. Rio Madeira: É um rio da bacia do Rio Amazonas que banha os estados de Rondônia e Amazonas, com uma extensão de aproximadamente 3315km, sendo o 17° maior do mundo em extensão.
3. Muras: Os Muras são um grupo indígena brasileiro que ocupam a região centro e leste do Amazonas. Tem uma ampla participação na história colonial brasileira, onde foi documentado que eram povos de personalidade arredia e espírito de resistência perante a o domínio dos Portugueses. Fora atacados três vezes por sucessivas e sangrentas “expedições punitivas”, o que acabou gerando contaminações por doenças como sarampo e varíola, porém em 1786 foi estabelecido um “acordo de paz”.
4. Tupana: Normalmente chamado de "Tupã", é considerado um deus poderoso, destemido e implacável. É representado em demonstrações artísticas como um super-herói, um homem forte, que manipula raios, o deus do trovão. Porém essa figura de Tupã que é apresentada no folclore brasileiro é uma criação católica, de acordo com Luís da Câmara Cascudo (1898-1986) no livro "Dicionário do Folclore Brasileiro" (livro abordado neste trabalho). Tupã foi criado pelos europeus para vender a ideia de um deus criador de todas as coisas, usado para se equiparar ao Deus cristão para ajudar no processo de catequização dos índios, e tal imagem ficou marcada na história. De acordo com Cascudo, não há indícios da existência de Tupã, esse ser onipotente e onipresente, antes da chegada dos portugueses, tal imagem é estranha aos povos tupi. Segundo o folclorista Ermanno Stradelli (1852-1926) Tupã é na realidade Tupana, a mãe do trovão, "ente desconhecido que troveja e mostra sua temibilidade imposta pelo raio, que abate como se fossem palha os colossos da floresta e tira a vida aos seres deixando os restos carbonizados". Na cultura tupi, todas as coisas inanimadas ou não, têm uma mãe, a mãe é quem gera, quem cuida, que protege seu filho ao longo do processo de desenvolvimento. Ou seja, Tupana é nada mais que a mãe do trovão, tida nas mesmas considerações das outras mães na cultura indígena.
5. Angaturamas: Reconhecidos pelos índios Mura como um espírito protetor. Mas também tem o significado de aquele que pratica o bem, é generoso, hospitaleiro, protetor. (Gaturama)
Bom agouro, bom presságio.
Angaturama do tupi-guarani: ¨angatu¨ = espírito bom + ¨rama¨ = o que vai ser (futuro).
6. Pajés: índio responsável pela realização e condução dos rituais de cura, em uma ritualização tem a autoridade para invocar e controlar os espíritos, possuindo, com isso, poderes de cura, curandeiro. Um shamã. Vem do tupi pa'ye.