A LENDA DE ITARARÉ POR CÂMARA CASCUDO
Em tempos idos a nação indígena que vivia às margens do Paranapanema¹ resolveu abandonar a região, escapando assim às atrocidades praticadas pelos brancos invasores.
Uma noite, porém, já em viagem, quando despertaram, estavam os índios completamente cercados e só à força de tacape² conseguiram abrir caminho por entre os adversários; mas, na fuga, uma das mulheres mais formosas da aldeia – Jaíra - caiu sob o poder do chefe do bando contrário, homem forte e valoroso.
Reuniram-se as nações indígenas convocadas, e durante uma lua inteira se prepararam para a guerra. Efetuaram a festa do preparo do curare³, também chamado uirari⁴.
Era a mulher mais velha da aldeia quem tinha a honra de preparar o veneno; vestia-se com penas vermelhas, escutava o canto dos pajés⁵ e partia para o mato, de onde voltava carregada de ervas.
Quando o curare ficava pronto, os vapores da panela subiam; ela os aspirava e caía morta. Assim se fez.
Depois de esfriado o curare, começou a dança em torno à panela, ervando todos os guerreiros as suas flechas. Antes de se iniciar a batalha, chegou um velho de muito longe e entrou a aconselhar, secretamente, os pajés: na guerra contra os brancos, que usavam armas de fogo, só deviam esperar a morte; eles eram muitos e sabiam defender-se; o que deviam fazer era o seguinte:
- Um dos nossos ocultará, perto do acampamento inimigo, filtros de amor que conhecemos, a fim de o chefe ficar apaixonado por Jaíra, e após deverá apresentar-se aos brancos como desertor da aldeia, para trabalhar com eles. Assim terá oportunidade de falar com ela e entregar-lhe drogas preparadas. E um dia, quando todos estiverem adormecidos pelo ariru, servido no banquete, os guerreiros indígenas, em massa, atacarão subitamente os inimigos, de tacape em punho. Não escapará nenhum dos brancos, cujos cadáveres serão lançados aos corvos”. Tal plano foi aceito pelos pajés.
No dia seguinte partiu o guerreiro, levando os filtros de amor, mas os índios em vão esperaram (como estava combinado) pelo canto da saracuara⁶, três vezes em noite de lua nova.
É que o chefe se apaixonara pela linda bugra⁷, e Jaíra também se apaixonara pelo moço, de modo que o guerreiro enviado regressou sem nada haver conseguido.
O tenente Antônio de Sá (assim se chamava o chefe) era casado e residia em Santos⁸, e quando sua esposa soube do amor que o ligava a Jaíra, fez que seu pai a conduzisse ao acampamento dos brancos, onde ela chegou, uma tarde, com muitos pajens⁹ e comitiva luzida.
Houve disputa entre os esposos, e, no dia seguinte, Jaíra, muito desgostosa, resolveu partir, dizendo ao tenente que ia esperá-lo à beira do rio Itararé¹⁰, a fim de fugirem, à noite, pela floresta. E rematou:
- Quando a lua for descendo pelos morros azuis eu cantarei três vezes como a araponga branca¹¹, e, se você não comparecer ao lugar da espera, ligarei os pés com um cipó e me atirarei ao rio.
E pôs-se a caminho, deixando, em lágrimas, o moço. À noite, ouviu-se três vezes o canto da araponga branca, mas o chefe dos brancos não foi procurar Jaíra.
Medonha e súbita tempestade revolucionou, então, aquela região, caindo raios numerosos que vitimaram muitos bois, reduzindo bastante os animais do tenente Antônio de Sá.
Ao amanhecer, o chefe foi a cavalo, acompanhado por um pajem, à pedra indicada por Jaíra, mas só achou ali a roupa da infeliz criatura, com uma coroa de flores de maracujá do mato, em cima. O tenente soltou um grito de desespero, e ficou tão alucinado, que se lançou à corrente e não veio mais a terra.
A senhora branca soube do ocorrido, dirigiu-se a cavalo ao rio, onde só viu a roupa de Jaíra e o lugar em que sucumbira o esposo, e em pranto, a vociferar, amaldiçoou o rio em que cuspiu três vezes.
Então as águas cavaram o solo e se esconderam no fundo da terra, os peixes ficaram cegos, a mata fanou-se e morreu!...
Contam que quem descia, de noite, à gruta de Itararé veria Jaíra, vestida de branco, com a grinalda de flores de maracujá, tendo ao colo o corpo do moço que morrera por ela. Às vezes, a sua sombra vinha à beira da estrada, matava os viajantes, tirava-lhes o sangue e com ele ia ver se reanimava o seu morto querido.
Dizem, em época mais recente, que a penitência já se acabou; e um dia, quando menos se esperar, as águas do rio hão de abrir de novo as suas margens e hão de espalhar-se pela terra, para refletir, à noite, o fulgor de todas as estrelas.
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¹Rio Paranapanema: (termo da língua geral meridional que significa "rio azarado": paraná, rio + panema, azarado) é um dos cursos de água mais importantes do interior do estado de São Paulo, no Brasil. Ele é um divisor natural dos territórios dos Estados de São Paulo e Paraná.
²Tacape: Arma indígena feita de madeira para ataque; borduna, clava.
³Curare: Veneno poderoso, extraído de várias plantas, incluindo várias espécies do gênero Strychnos. Se apresenta como um líquido preto, resinoso e espesso que logo se torna numa massa dura e quebradiça.
⁴Uirari: O mesmo que “Curare”. Um veneno preparado no qual os caboclos geralmente ervam suas flechas. Vem do Tupi WI'RARI.
⁵Pajé: Entre o povo indígena, é o responsável pela realização e realização de rituais de cura, em uma ritualização o pajé tem autoridade para invocar e controlar os espíritos, tendo, com isso, poderes curativos, curandeiro. Um xamã. Vem da língua nativa indígena Tupi PA'YE.
⁶Saracuara: é o nome indígena para esta espécie que vive nos pântanos. Saracura-do-mato é uma ave gruiforme da família Rallidae. Também conhecida como siricoia, saracura e saracura-do-brejo.
⁷Bugra: Denominação dada a indígenas por serem considerados não cristãos pelos europeus. O vocábulo passou a ser aplicado, também, para denotar o indígena no sentido de "inculto", "selvático", "estrangeiro", "pagão", e "não cristão" - uma noção de forte valor pejorativo.
⁸Santos: é uma cidade portuária localizada no litoral de São Paulo.
⁹Pajen: Geralmente um jovem servo, usado por príncipes ou guerreiros para acompanhá-los em campanhas militares.Geralmente acompanha alguém a cavalo carregando suas armas.
¹⁰Rio Itararé: é um curso de água que atravessa os estados de São Paulo e Paraná. "Itararé" é um termo tupi que significa "pedra escavada". Designa rios subterrâneos, que correm no interior de pedras calcárias.
¹¹Araponga branca: A araponga é uma ave passeriforme da família Cotingidae.Também conhecida por guiraponga, uiraponga, ferreiro e ferrador. Araponga é nome indígena e vem de ara (ave) e ponga (soar).