A MORTE DO ZUMBI POR CÂMARA CASCUDO
Na Serra da Barriga¹, em sua encosta oriental, viveram, setenta e sete anos, os negros livres dos Palmares. Tinham fugido de várias fazendas, engenhos, cidades e vilas, agrupando-se derredor de chefes, fundando uma administração, um Estado autônomo, defendido pelos guerreiros que eram, nas horas de paz, plantadores de roças e criadores de gado.
Elegiam vitaliciamente, um Zumbi, o Senhor da força militar e da lei tradicional.
Não há ricos, nem pobres, nem furtos nem injustiças. Três cercas de madeira rodeavam, numa tríplice paliçada1, o casario de milhares e milhares de homens.
Ao princípio, para viver, desciam os negros armados, assaltando, depredando, carregando o butim² para atalaias³ de sua fortaleza de pedra inacessível.
Depois o governo nasceu e com ele a ordem; a produção regular simplificou comunicações pacíficas, em vendas e compras nos lugarejos vizinhos; constitui-se a família e nasceram os cidadãos palmarinos.
As plantações ficavam nos intervalos das cercas, vigiadas pelas guardas de duzentos homens, de lanças reluzentes, longas espadas e algumas armas de fogo. No pátio central, como numa aringa africana, residia o Zumbi, o Rei naquela república negra, o primeiro governo livre em todas as terras americanas.
Ali o Zumbi distribui justiça, exercitava as tropas, recebia festas e acompanhava o culto, religião espontânea, aculturação de catolicismo com os rituais do continente negro.
Vinte vezes, durante a existência, foram atacados, com sorte diversa, mas os Palmares resistiam, espalhando-se, divulgando-se, atraindo a esperança de todos os escravos chibateados nos eitos5 de Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia.
A república palmarina desorganizava o ritmo do trabalho escravo em toda a região. Dia a dia fugiam novos soldados, futuros soldados do Zumbi, com seu manto, sua espada e sua lança real.
Por fim, depois de numeradas investidas, em 1695, sete mil homens veteranos, comandados por grandes chefes de guerra, marcharam sobre Palmares. Debalde6 o Zumbi levou suas forças ao combate, repelindo e vencendo. O inimigo se recompõe, recebendo viveres e munições, quando os negros, sitiados7, se alimentavam de furor e vingança.
Numa manhã, todo o exército atacou ao mesmo tempo, por todas as faces. As paliçadas foram cedidas, abatidas a machado, molhando-se o chão com o sangue desesperado de negros guerreiros.
Os paulistas de Domingos Jorge Velho; Bernardo Vieira de Melo com as tropas de Olinda; Sebastião Dias com os homens de reforço - foram avançando e pagando caro cada polegada que a espada conquistava.
Gritando e morrendo, os vencedores subiam sempre, despedaçando as resistências, derramando-se como rios impetuosos, entre casinhas de palha, incendiando, prendendo, trucidando.
Quando uma derradeira cerca se espatifou, o Zumbi correu até o ponto mais alto da serra, onde o panorama do reino saqueado era completo e vivo. Daí, com seus companheiros, olhou o final da batalha.
Paulistas e olindenses iniciam uma caçada humana, revirando as palhoças8, vencendo os últimos obstinados.
De cima da serra, o Zumbi brandiu lança espelhante e saltou para o abismo.
Seus generais o acompanharam, numa fidelidade ao rei e ao reino vencidos.
Em certos pontos da serra ainda estão visíveis as pedras negras das fortificações.
Ainda vive a lembrança ao último Zumbi, o Rei de Palmares, o guerreiro que viveu na morte seu direito de liberdade e heroísmo…
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¹Paliçada é uma cerca feita com estacas fincadas na terra que serve de barreira defensiva
²Butim é um conjunto de bens materiais que se toma ao inimigo no curso de uma batalha
³Atalaias são torres de observação; qualquer lugar mais elevado onde se vigia; sentinela ou vigia.
⁴Aringa é um campo fortificado de chefes de tribos africanas.
⁵Eito é um outro nome para roça, onde trabalhavam escravos.
⁶Debalde significa também de modo inútil; que não apresenta resultados.
⁷Sitiados é uma forma de chamar alguém que está cercado.